segunda-feira, 18 de maio de 2015

                                                       Judy – Drive MyCar

Stevie deslizava suas meias brancas e sujas sobre o chão da sala, evitando assim fazer qualquer ruído que fosse desnecessário naquela situação. Sua esposa estava no quarto e o pequeno bebê, agora aninhado nos braços do pai, berrava em claro incômodo.
Ele embalou a criança nas cobertas e cantarolou algo em seu ouvido com objetivo de fazê-la voltar a dormir.
Judy.
Esse foi o nome escolhido para aquele pequeno fruto divino.
Em seus pensamentos Stevie sempre imaginava que seu primogênito seria um homem. Um garoto a quem ele ensinaria a jogar futebol e levaria ao estádio em dias de clássico. Seu nome deveria ser Jude, como naquela famosa canção dos Beatles. Mas o destino, no entanto, lhe mostrou o quão impotente pode ser a opinião de alguém sobre o futuro, e brincando com seus desejos de pai, lhe presenteou com uma frágil menina, que nascera prematura e com pouco mais de dois quilos.
- Então será Judy – informou ele à esposa, e ela como sempre acatou a ideia.
Stevie era um homem de extremo envolvimento familiar, mas não era, uma pessoa que suportava ser contrariada, e Samanta sabia muito bem disso. Seu temperamento explosivo havia se agravado ainda mais após os longos plantões na ala médica do hospital regional onde trabalhava. A rotina hospitalar e a convivência diária com pacientes em estágio terminal haviam lançado o médico em um quadro de stress grave, que desapontava em ataques de pânico e transtornos de ansiedade frequentes. O brilhante profissional adentrava no poço da loucura, mas ele não se entregaria sem lutar.
Ainda com Judy envolvida em seus braços ele se aproximou da estante de discos. O móvel era de uma madeira escura, imponente, com adornos contornando cada uma das aberturas. Da primeira fileira de discos, organizados em ordem alfabética, ele retirou o A Hard Days Night, terceiro álbum dos Beatles, e motivo de orgulho para o seu dono.
Observou o objeto por alguns segundos como se pudesse sentir a vibração que ele emanava. Ajustou-o em uma vitrola antiga e aprumou a agulha com a mão vazia. Judy dava pequenos gemidos, como que avisando que algo deveria ser feito com urgência se não quisesse ouvir seu protesto mais uma vez.
O volume da caixa de madeira foi então regulado para que o som não passasse de um murmúrio.
Judy absolveu as primeiras notas como se as reconhecesse, e de fato as conhecia, pois faziam parte de sua distinta canção de ninar. Balançando-a com calma de um lado para outro, Stevie dançava, em passos desritmados, com sua filha pela sala. Vez por outra o assoalho rangia em protesto, a casa era velha e há muito tempo precisava de uma reforma.
Três canções se passaram quando por fim o bebê calou-se por completo. Adormecera.
O pai olhava-a de forma admirada, deixando escapar uma solitária lágrima do olho esquerdo. Ele caminhou de volta ao quarto, parando no umbral da porta, e de lá pôde observar a silhueta de sua mulher se destacando no escuro.
Ele entrou.
Foi até o berço, e como se carregasse uma frágil boneca de porcelana, pôs a menina sobre o pequeno colchão recém comprado. Seguiu até a cama, onde encontrou com sua esposa, beijou-a na testa e afagou os seus longos cabelos escuros. As consequências de cada passo estavam sendo contabilizadas para que assim todos os possíveis ruídos fossem evitados. Stevie alcançou o sapateiro e de lá retirou um tênis branco de caminhada, calçou-os com a devida cautela, e saiu.
Seu casaco estava preso em um cabideiro atrás da porta principal. Tornavam-se raras às vezes em que ele saía à noite, mas há três quadras de sua casa existia uma loja de conveniência, e havia algo lá que ele precisava com urgência.
Da sacada de sua casa ele avistou o Mustang Shelby 67, um presentinho que ele se deu quando conseguiu o emprego definitivo como médico no hospital,
mal sabia ele que aquele trabalho também seria a sua ruína. O carro estava estacionado de frente para casa, e apesar da proximidade com a loja, ele estava certo de que não poderia ir andando por todo o caminho.
A noite estava fria.
O automóvel alcançou seu destino em pouco tempo, e pela janela Stevie pôde observar o estabelecimento quase vazio, com exceção de um careca que vasculhava o expositor de cigarros perto do balcão, e da atendente loira que obrigatoriamente enfrentava o rejeitado turno dos bêbados, como era conhecido o expediente depois das 22 h.
Ele desceu do carro e entrou na loja.
O ambiente era pequeno, e as prateleiras se emaranhavam de forma pouco homogênea por todo corredor. Lá dentro, o frio parecia estar tão intenso quanto no pátio externo.
É uma bela espelunca – pensou.
Ele se dirigiu para a área dos laticínios, separou alguns sacos de leite e colocou-os em uma pequena cesta que estava pendurada na prateleira. Dirigiu-se então a área de limpeza, que devido o tamanho do local ficava a apenas cinco passos de distância, e de lá separou algumas flanelas brancas, daquelas usadas para lustrar a lataria de carro.
Viu de soslaio o careca sair sem comprar nada. Talvez estivesse ali apenas para tentar cantar a balconista ou quem sabe tivesse a pretensão de roubar algo. Stevie imaginou como a garota atrás do balcão deveria sentir-se ao se ver sozinha, de madrugada, com uma figura como aquela por perto.
O médico retirou a cesta da estante, desprendendo os grampos que a seguravam, e foi até o balcão.
No caminho ele pôde ver a menina sorrindo para ele.
Ela o conhecia.
Mas também, quem não conheceria o único médico do bairro? O Doutor Stevie, que morava no fim da rua em um possível casarão mal assombrado, como afirmavam as crianças.
- Boa noite, Doutor – disse ela, e ele percebeu que mascava chiclete, mas de uma forma muito discreta.
- Boa noite – respondeu com um sorriso amarelo no rosto.
A garota aproximou a calculadora que estava sobre o enorme balcão de madeira e começou a somar os produtos de forma individual, retirando-os, um por um, da cesta e separando-os em uma sacola.
Essa era a oportunidade pela qual ele esperava.
O coração de Stevie acelerou. Sua garganta ficou seca, e suas mãos tremeram.
Tentou se acalmar sussurrando uma contagem até dez.
A menina ergueu um pouco a cabeça para olhar o que o médico estava dizendo.
Então Stevie segurou a cabeça dela, agarrando-a pelos cabelos. Sua bela face foi erguida de modo que seus rostos se encarassem. Sua beleza era incontestável, pelo menos para ele.
Houve apenas um segundo de hesitação.
Até que o crânio dela fosse puxado com toda a força sobre o balcão de madeira.
Ela não teve tempo de gritar. Não entendia porque aquilo estava acontecendo.
Parte de seu rosto esmagou a calculadora, e a outra metade chocou-se em um baque surdo direto contra a dura superfície. Ela não desmaiou. De alguma forma o objeto sobre o balcão havia amortecidoa pancada.
Parte do plano havia fraquejado, mas o sangue que escorria do nariz como uma cascata logo alteraria seu patamar de atordoada para inconsciente.Em breve ela estaria desmaiada. Ele sabia disso, afinal era médico.
O único médico do bairro.
Stevie segurou a menina por baixo dos braços e puxou seu corpo por cima do balcão.
Ele precisava agir rápido antes que alguém chegasse.
Colocou a balconista sobre o ombro e saiu da loja, deixando para trás um rastro vermelho que seguia das costas de seu casaco até o chão mal varrido.
O carro havia sido estacionando quase que totalmente na frente da porta de vidro, virado em rota de fuga. Ele a jogou no banco traseiro, entrou no carro, e partiu em disparada. Se alguém havia visualizado o ocorrido então a polícia lhe visitaria em breve.
Ele tremia.
Em sua cabeça a música Drive My Car tocava no último volume, tentando afastar em vão os fantasmas da sua alma. “Você pode dirigir meu carro. Sim, eu vou ser uma estrela. Você pode dirigir meu carro, E talvez eu o amarei.
Beep beep'm, beep beep, yeah”
E quanto mais Lennon, McCartney e George gritavam mais rápido ele dirigia.
O Mustang voava furioso pelas pistas desertas, e nem o frio intenso parecia acalmá-lo. O médico estava transtornado. Quase tinha matado aquela menina, e se isso de fato tivesse acontecido ele teria colocado tudo a perder, se é que já não tinha estragado tudo.
Chegou à casa poucos minutos após sua saída. O silêncio revelava que Judy permanecia dormindo, o que era um alívio. Ela teria que dormir profundamente essa noite.
Stevie observou o corpo da balconista no carro, e constatou que ela havia desmaiado assim como presumido. Correu até a sacada, e do molho de chaves que tinha no bolso selecionou uma e abriu a porta principal.
A calmaria era profunda.
Adentrou no recinto evitando o peso dos passos, caminhando até o último cômodo do corredor. O quarto de hospedes, que ele havia transformado em enfermaria, e onde realizava pequenos procedimentos para os moradores do bairro.
Preparou uma injeção de sedativo, deduzindo o possível peso da balconista, e voltou para o carro. Ele não poderia deixá-la acordar. Aplicou o sedativo, se lamentando por ter esquecido esse instrumento tão óbvio em sua captura, e garantiu que o corpo ficasse imóvel. Respirando, por fim, aliviado.
Depois do primeiro susto, tudo parecia estar caminhando conforme o esperado, mas pondo em dúvida sua sorte, foi até o quarto para verificar se ali tudo também estaria bem.
Viu Judy no berço ainda dormindo, e sua esposa,envolvida em lençóis, na cama. Deitou-se ao seu lado e acariciou os desenhos de sua face.
Ele sorriu.
O corpo dela era perfeito, e por um momento até pareceu quente.
Apesar dela estar morta há algum tempo.

AUTOR: T.J NICODEMUS

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